domingo, 6 de fevereiro de 2011

Mãe-Preta

Mãe-Preta

Da cor-amor,

Aroma-perfume,

Sem ódio e queixume.

Amamentas,

De peito aberto,

No acalanto

Das esperanças

Que amas tanto.

Os teus seios formam pão e fermento

Que permitiram o bom cozimento

Da nova raça amalgamada

Nos trópicos.

Ai, tanta dor,

Tanto sofrimento,

Ai, tanto amor

Desta realidade sonhada

E benditos sejam todos estes sonhos utópicos.

Receptáculo de vida no próprio ventre

Onde agasalhastes o fruto

Bendito dum amor acalentado

Produto

( quantas vezes)

Do vilipêndio e do pecado.

Ama e aia

( que guardou no segredo sob a saia

Filhos de amos e senhores)

Que testemunhava o amor oculto consentido

Que, por todos, deste o sangue e a vida

E os tornastes livres para que livremente vivessem

E construíssem a Pátria do futuro

No amor acrisolado,

Eivado de sonhos utópicos,

Tão lindo e tão puro,

Haverá de ser eternamente lembrado.

Mais forte que a rocha em que te imortalizaram o ser,

És perene e eterna como a pedra em que te moldaram o corpo,

Te esculpiram a face mas te deixaram a alma liberta

Que essa subsiste a todas as escravidões e grilhões e peias

E guarda a chama da liberdade sempre alerta.

As almas são sempre livres porque eternas e imortais

E não há força que lhes pode as asas

E as impeça de alcançar os umbrais

Da predestinação eterna.

Mãe-Preta dos negros da cor do café,

Mãe-Preta dos brancos da alvura do pão,

Mãe-Preta dos mulatos da cor do chão,

Mãe-Preta de todos que alimentastes

Nas tetas retesadas do teu peito ardente,

Mãe-Preta de nós e de toda a gente!

Mãe-Preta , obrigado porque ficastes.

In “ O Livro das Horas” vasco Alentejano

O tempo e a memória

O tempo e a memória

Só fazem história

Revivendo-se no ontem eu já passou.

Sob os olhos perscrutadores

Que rasgam a lembrança

Até a esperança

Que veio e foi

Se acabou.

In “ O Livro das Horas”

Vasco Alentejano

domingo, 10 de outubro de 2010

REGRESSO

Voltei na tênue esperança do regresso

Com os horizontes cerrados

Pela inclemência.


Refulge o fulgor num céu espesso

Nos caminhos acidentados

Da existência.


Voltei como quem vai e chega

No rumo certo das andanças

Com a luz clareando esperanças

Na rota da vida a que se apega.

Cheguei vislumbrando a Eternidade

Na fulgurante áurea da conquista

Que ilumina o regresso na chegada.


O caminho é lento mas, sempre se avista

A luz demarcando a longa estrada

A iluminar a roda do Sete-Estrêlo.


Renova-se a esperança consentida

E a sombra de Deus é pressentida

Na ânsia incontida de revê-Lo!


Por isso cheguei e estou aqui

Tangendo a harpa no ressoar antigo.

Sou o mesmo ainda, não morri,

Tão acalentado fui por meu Amigo!

S.Paulo, 3/10/2.010

Vasco dos Santos Alentejano

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

ECOS DA UTOPIA NO PARAÍSO PERDIDO

ALENTEJANO D´ÁVILA

I

É tudo verdade. O homem, entretido com os canteiros de flores, não deu pela minha aproximação. Penso que só fui notado pelas orquídeas selvagens, agarradas aos troncos das mangueiras alinhadas na alameda, parecendo curvar-se à minha passagem, em reverencial atitude. Minto. Duas vacas leiteiras, pastando no cercado, arrebanhando febras de capim nas touceiras verdejantes, pareceram notar-me. Ruminando sem parar, levantaram a cabeça e me olharam com pasmaceira contemplativa. Admiradas, lá a seu modo, não baixaram mais a cabeça para abocanhar o resto do capim atufando a moita.Não. Prosseguiram ruminando o alimento refluindo do estômago, num vagar de embalar crianças. Depois, com uma ponta ou outra de erva entalada nos cantos da boca, fixaram-me atentas e, num mugir lânguido, sensual, como se fosse, -“ mééé!...”, afastaram as patas traseiras empurradas pelos úberes amojados e urinaram abundantemente, abrindo poça no chão. Era o sinal, saberia daí a pouco, da ordenha. O homem não tardaria a atender ao sintomático apelo destas criaturas.

Lembro que, nalguns mourões de peroba, demarcando a cerca, variedade de aves e pássaros, suspenderam o gorjeio e me reverenciaram no olhar. De resto, flores e mais flores, exalando perfume que inebriava. A manhã límpida adornava um céu brasileiro. Borboletas dos mais variados matizes, flanavam ao sabor da brisa, exibindo a graciosidade dos corpos minúsculos. Já havia abelhas obreiras zumbindo em volta das flores à cata do pólen, carregado nas patinhas ágeis a caminho da colméia oculta na mataria. No canteiro dos fundos, continuava o mesmo homem do qual me aproximei.

-Bom dia, amigo! – saudei-o. Ele, de tronco curvado, continuou cuidando das flores e retribuiu a saudação sem me olhar, parecendo não se incomodar comigo.

- Venha com Deus!- e prosseguiu no mesmo entretém de rotina. Provoquei-o:

-Como vai, o amigo?

-Graças a Deus, muito bem, meu irmão.

Provoquei-o de novo:

-Pelo jeito, esse canteiro é muito especial. O amigo nem se tocou com a minha chegada e nem quis saber quem eu era.

-Como não? Você é meu irmão. Já o conheço de outras visitas.

-Mas, eu nunca estive aqui.

-É o que você diz e não o que eu penso. Se não foi você, foi o outro você.

-Que outro?

-O outro que também é seu irmão e meu irmão igual. Somos todos irmãos. Nó, os humanos, os animais, as aves, a natureza, tudo o que nos rodeia, o universo por inteiro. Pouco importa que seja você, o de hoje, como o de ontem foi e o de amanhã será. Conheço todos pela voz que vem da alma e nos identifica na fraternidade universal. Somos irmãos, meu querido. A sua voz não me é estranha. Esteja à vontade. A casa é sua, ou melhor, nossa.

O homem continuou insistindo e eu continuei perplexo. Nem falei mais. Quer dizer, não parava de falar comigo mesmo. Esta mudez ninguém pressentiria. Foi quando o homem se ergueu com uma flor na mão. Encarou-me e ofereceu-me a rosa vermelha que segurava.

-Tome. É sua. Cheire- baixou-se para colher outra no mesmo canteiro e segurou-a na mão. Só quando se ergueu de novo, reparei que o homem com quem conversava era cego. Veio o espanto. Murmurei para mim mesmo: “Meu Deus! O homem é cego !”. Pude, então, observá-lo melhor e confirmar a surpresa. Era espantoso, sim. Olhos claros, grandes, parecendo enxergar o infinito. O homem sorriu, cheirou a flor, sorveu o perfume e comentou inebriado:

-Como a natureza é pródiga! Que perfume delicioso! Cheire – e aproximou-me a flor.

Imaginei-me ante um quadro surrealista. Queria lhe fazer perguntas, muitas perguntas. Porém, sentia-me tolhido, confuso, incrédulo, ante o que via e se me afigurava. O cego pareceu adivinhar a minha perplexidade e tranquilizou-me com benevolência:

-Como vê, já nos conhecíamos de há muito.

-Amigo, nunca estive aqui.

-Todos os dias vem gente aqui. Gente como você. Prezo muito os amigos que me visitam. De modo que se não foi você, como diz, foi você dentro de um seu amigo, o que, para mim, é a mesma coisa. Como vê, sou cego. Só enxergo com os olhos da alma e não faço distinção entre os homens e a natureza. Somos todos irmãos. Já pode sentir comigo este amor intenso que nos une uns aos outros, juntos com a natureza que nos contempla. Bem – direcionou a conversa- vamos lá que as vacas nos esperam. Todos os dias têm que ser ordenhadas. São generosas e precisam distribuir a sua generosidade – o meu espanto continuava e ele prosseguia- daqui a pouco chegam as visitas do costume – crianças que foram jogadas na rua. Irmãos que irmãos desprezam. O leite é repartido pelas crianças e, junto com elas, fazemos a refeição com que nos alimentamos todos, irmanados na mesma fraternidade. Tem muita verdura e hortaliça na horta ali ao lado – apontou o local com os braços. Se o irmão esperar mais um pouco, vai compartilhar conosco desta refeição comunitária. Todos os dias, aqui, se revive uma nova Última Ceia, como está escrito lá nos Evangelhos. Sei disto porque o aprendi com o meu pai que sempre me contava estas coisas. Vai gostar.

O caso é que já havíamos chegado até onde estavam as vacas a que se referia. Os animais mugiam, erguendo a cabeça na nossa direção como se fossem saudar-nos. O homem, apontando para a cerca, pediu-me que pegasse o vasilhame emborcado num dos mourões de peroba e lho entregasse. De imediato, o atendi. Vi os latões de borco, peguei-os e entreguei-lhe o primeiro. Ele logo flectiu as pernas, dobrou os joelhos e entalou o latão ali. Ajoelhado, afagava as tetas da vaca. Era carícia grata ao animal, abrindo as patas, lasseando o corpo, oferecendo-se para a ordenha.

O animal continuava ruminando pachorrento e eu contemplava o espichar do bico das tetas amojadas, cedendo à pressão calosa das mãos daquele homem fazendo espirrar o leite em esguichos dentro do latão que se ia enchendo aos borbulhões. Em seguida, pediu-me que lhe alcançasse o segundo latão. Obedeci e fiz-lhe entrega da vasilha. Então, ele assobiou e a outra vaca atendeu ao assobio e encaminhou-se na sua direção. De leve, deu-lhe uma palmada nas ancas. A vaca abriu as patas traseiras e, seguindo o mesmo ritual, ordenhou-a. Em pouco tempo encheu mais este latão e disse:

“-Está pronto o leite das crianças.

LANÇAMENTO DOS LIVROS EM LISBOA



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terça-feira, 18 de dezembro de 2007

Refletindo o Presépio

Refletindo o Presépio


O bercinho
É a manjedoura.
Assim parece
A cama onde o menino
Adormece.

Deitado,
Com o pai e a mãe ao lado
E a vaca e a burrinha
E os pastores, com seu gado,
De chapéu na mão,
Atônitos, em prece,
Ajoelhados no chão.

O menino dorme
E acorda e galreia
Mas, a luz que do céu desce,
Não é chama de candeia,
Não é não,
É uma estrela tão intensa
Que resplandece
E incendeia
A amplidão
Imensa!

Silêncio!
Não vá o menino acordar.

Sabe-se lá!
Tudo pode acontecer....

Foi quando o maroto
(pestinha,
de garoto)
Se ergueu
E disse,
Na sua tagarelice,
Apontando o dedinho
Ao céu:
- Vá,
Vem me ver
E falar comigo.
Estou louquinho
Pra te conhecer,
Meu amigo!

S.Paulo, 13 de Dezembro,2007-12-13 5ªfeira

Vasco dos Santos

terça-feira, 4 de dezembro de 2007

Elegia de Natal


O mesmo menino voltou
Aqui,
Este ano,
Como no ano que passou.

Eu o vi,
Criança,
Ali
Deitado
Com o mesmo sorriso de esperança
Que trouxe no ano passado.

Coitado
Do garoto!
Estava vivo,
Tremendo,
Embrulhado
Num cobertor surrado
E parecia morto.

Pois eu falei com ele
E, na conversa
Havida,
Igual
À do ano passado,
Repetiu o mesmo que me disse,
Naquele Natal,
“numas palhinhas deitado!”

Deixou
A promessa
E o amor
E a esperança
E a conversa
Foi tão gostosa e boa
Que grudou
Nos meus ouvidos
E, até hoje, neles ressoa.

35
Pronto,
Afinal,
Eu não sou tonto
E não me engano
Com o Natal
Daquele e deste ano
Que aqui descrevo,
Como penso e devo,
Relato e conto,
É o mesmo do ano passado,
Descrito ponto por ponto
E por mim relatado
Conforme o dito e o contado.

Nos ouvidos moucos
Ressoam ecos roucos
Que revolveram o mundo:
-Amai-vos uns aos outros!

Essa revolução
Carrega mistério profundo!

-Amai-vos ! amai-vos!
Amai-vos uns aos outros!

Ponto final
Na divagação.
É Natal,
Sejamos todos loucos
Mas puros de coração.

Natal de 2007

sexta-feira, 30 de novembro de 2007

A árvore da minha calçada


A Prefeitura
Veio
E naquela aventura
De que tudo conserva
E arruma,
Cortou,
Com desenvoltura,
Sem graça nenhuma,
A árvore que eu plantei,
Ao meio.

Porque foi e não foi,
Não sei
O porquê do leguleio.

Desfez
O que eu fiz,

Que é como quem diz,
Há mais de quarenta anos!

E não se vá pensar
Que cometeu enganos!
Era o que faltava!
Fora assim
E não viria
À frente de mim,
Como agora o fazia,
E arrancava
A árvore logo pela raiz!

Não contente,
Pintou e bordou,
(assim se fala
E assim se diz
E quem diz e fala,
Não se cala).
Arrancou
E desrespeitou
Todo o meu esforço!
-Não faça isso, seu moço!
-gritei e disse
Antes que se consumisse
Todo aquele vil esforço.

E, para que todos notassem,
Quando pela rua passassem,
A força do poder e da vontade,
Esgalharam tudo,
Tudo, tudo,
De verdade,
- a árvore arrancada
E a minha alma estraçalhada
E eu perplexo e mudo!

No arremate presunçoso
Do mal feito por bem fazer,
Enjaularam o pequeno rebento
Da planta,
Frágil e muda,
(Isso é que espanta!)
Árvore que será um dia
Se um dia o haverá de ser,
Numa tela de arame,
Uma gaiola ao vento
Onde tudo pode acontecer,
Com o gosto do mau gosto ali gravado,
num letreiro infame,
Com sabor de pecado:
-conservando a natureza!

Com franqueza,
Confesso,
ao leitor que me leu:
-Meu Deus do Céu,
Desconheço
Igual epitáfio
Escrito com tanta vileza!

S.Paulo, madrugada de 29 de Novembro.
Vasco dos santos

quinta-feira, 22 de novembro de 2007

O Achamento do Brasil



O ACHAMENTO DO BRASIL

tanta água e tanto mar!
Tantas mágoas pra contar!

POEMA

“Faz muito tempo, muito tempo mesmo, quase século, que não leio um livro de poesias tão empolgante, tão forte, como “ O Achamento do Brasil”.
“ Talvez esse “ O Achamento do Brasil” tenha sido um dos melhores livros publicados em Língua Portuguesa nos últimos anos, onde Vasco dos Santos não cansa de falar da nova terra e de raça que Portugal plasmou, como poderemos ver nos versos seguintes: “Eu vi corações de índios e lusos/argamassarem-se na argamassa/que deu a massa/e pariu a raça/dos caboclos e dos mestiços e dos cafuzos”
“O Achamento do Brasil” é leitura obrigatória na casa de cada brasileiro. Isso devido à qualidade dos seus versos de profunda inspiração, onde se sente palpitar, a toda a hora, a origem e a raiz desta nova raça que despontou no Brasil”
“Vasco dos Santos é poeta de estilo personalíssimo....”
“...ou, ainda, nestes outros verso antológicos, onde o trovador assim se expressou:
”Ó almas de sonhadores aventureiros/sulcando o mar misterioso e profundo/rasgando o oceano, estremecendo o mundo/sob o brilho intenso da lua” Aristides Theodoro

“Foi longa a jornada até aqui,
Como longe foi o mar-
-caminho de longada-
Sempre a navegar.

Tanta água e tanto mar!
Tanta mágoa pra contar!

Tantas lágrimas que salgaram o mar salgado
E não puderam embarcar no cais da partida
E lá ficaram para sempre, pra toda a vida.

Em cada nau ou caravela
Vai um mastro, frme e arrogante,
Apontando num rumo certo
-o mesmo sonho do Infante..
.........................................................

Tanto mar
E tanta pressa
De chegar
Antes que aconteça
A alma desanimar
E a vontade esmoreça
Sem vontade de caminhar.

Ó almas de sonhadores aventureiros,
Sulcando o mar misterioso e profundo,
Rasgando o oceano, estremecendo o mundo,
Sob o brilho intenso da lua,
Sob o luzir do sol e das estrelas
Alcandoradas no firmamento,
Que mais esperais delas
Que o clarear da rota,
A iluminação da rua
No caminho certo do descobrimento,
Aqui tão perto, à nossa porta!

..........................................................

Ó sonho louco e vão
Da vã e louca aventura!

..........................................................

Tantos dias, tanto mar,
Tantas alegrias pra contar,
Tantas agonias pra lastimar.

Ó águas salgadas do mar,
Ó almas cheias de mágoas,
Ó águas cheias do mar,
Ó ondas do mar salgado,
Aonde me pretendeis levar?

Ó águas do mar sem fonte,
Ó fonte das águas do mar,
Cai a tarde no horizonte,
Vêm as saudades no luar.
...........................................................

Tanto mar e tantas águas
Ó mar das águas salgadas,
Ó mar de todas as mágoas,
Ó todas as mágoas do mar.

.....................................................

Ó âncoras dos marinheiros,
Ó ninfas do mar profundo,
Ó intrépidos aventureiros,
Descobridores do novo mundo!”

...........................................................

“Noutro local, adormecido
Num túmulo de pedras e mármore engastado,
O rei e senhor dom João segundo
Foi subitamente acordado
Para que tomasse conhecimento
De todo o acontecido.

Saiu do túmulo alvoroçado
E acorreu ao promontório de Sagres
Para confirmar o sonho de milagres
Ecoando à porta do seu túmulo
Donde o chamaram em gritos de alvoroço.

Quedou-se a acompanhar
A azáfama dos homens do mar,
A ver e observar o rumo
Das naus e das caravelas de panos redondos
A navegar,
Com as velas pandas,
A prumo,
À luz do sol e do luar, de velas enfunadas.....

..........................................................................

Pode voltar à sepultura,
Rei dom João segundo,
Pode continuar sonhando,
Sonhador Infante de Sagres,
Do famoso promontório,
Chegamos à terra da ventura,
Alcançamos a terra dos milagres,
E conseguiremos o céu
Sem passar pelo purgatório.

E as flores dos verdes pinhais
Plantados nos areais
Pelo rei-poeta-s0haverão de sonhar muito mais,
Porque dos seus troncos brotou o lenho,
Que agora singra o mar aberto
Com tanto amor e tão grande empenho!

Continua repousando,
Rei dom João segundo!
Continua sonhando
Infante sonhador
Nas rochas do promontório
Fustigado pelo mar oceano,
Bafejado pela brisa suave......

........................................................

Tudo são sonhos do rei-poeta
Tudo são sonhos do rei-profeta,
Tudo são sonhos o Infante,
O mais sonhador da história
Que, do promontório de Sagres,
Fez um mirante
Imortalizando o sonho e a esperança
E a memória!
Avante! “

.....................................................

“...E nas páginas
Do livro dos assentos,
Dos registros dos nascidos e batizados,
Dos vivos continuando a luta
E dos mortos no descanso derradeiro,
Folheei folha a folha do livro das escrituras
Deste registro do encontro e da posse da terra
Som o testemunho das potestades do mar
E dos céus onde a Eternidade habita,
Todos, por igual, espantados por tamanho acontecimento,
E, ali, apareceu o nome de todas as gerações,
Das passadas e das presentes e das futuras,
Tudo lá encontrei discriminado e vi
Que todos os que ao livro de assentos tiveram acesso
Puderam confirmar tudo isso,
Conferir a ata solene do descobrimento

Conforme se lê e reza nos registro da escritura.....

...................................................................................

E vi os índios conversos e convertidos
À volta da igreja dos missionários
Aprendendo as primeiras letras,
A aceitar a doutrina e os costumes,
A ouvir atentos as novas da Boa Nova,
A enlearem-se aos brancos e eles
Aos brancos se enlearem.

E vi corações índios e lusos
Argamassarem-se na argamassa
Que deu a massa
E pariu a raça
Dos caboclos e dos mestiços e dos cafuzos.

E vi todo o mundo atônito por isso
Porque o mundo só agora
Se dá conta de tudo isso.

Conforme se lê e reza nos registros da escritura.....”

sexta-feira, 16 de novembro de 2007

O SOLITÁRIO DA MONTANHA


O Solitário da Montanha

Romance
]



A arte que tem o dom de transformar as partituras de fogo do silêncio, para aí edificar um reino de luz e de beleza, onde a palavra e a imagem constituem os achados antológicos de maior relevo, só podia mesmo sobreviver a todas as idades do homem e chegar até nós de forma exuberante e serena.
A literatura é essa arte ancestral e mitológica, pois contemporânea do homem primitivo e das religiões fundadoras da verdade e de todos os cenários de redenção e de ressurreição dos devaneios humanos e de suas veladas esperanças.
Os poemas heróicos das civilizações primitivas, as fábulas com que no passado os ensinamentos e sabedorias foram transmitidos, as gestas medievais, o teatro de destinos cruzados com que os gregos tanto se bastaram, os romances de cavalaria, os tratados filosóficos de todas as utopias políticas, o romance burguês e de costumes sociais dos séculos dezoito e dezenove são exemplos de literatura que se fez para a glória dos valores mais afortunados que o homem moderno representa.
O romance é, por essência, o maior de todos os empreendimentos poemáticos. Enquanto a poesia se faz com a estética do fragmento e da linguagem, o romance se faz com a forma, o conteúdo e a visão de mundo dos escritores mais afortunados. O romance, repito, se faz com a unidade dos arquétipos sociais e psicanalíticos, com a unidade da expressão literária a tecer os fios de ouro da semântica.
Um romance se faz com estruturas relacionais e com enredos polifônicos e assim também com gestos e ações de sentido universal e filosófico quando se trata de um romancista de talento.Existe um movimento no romance que somente o romancista compreende em um primeiro momento.
No entanto, quando o autor de um romance é, ao mesmo tempo, criador e criatura e outros universos, gêneros literários e polifonias para além da dispersão e da unidade do ser, como é o caso dos poetas e dos que sabem a arte do pensamento por imagens ( ensaístas e críticos literários de maior estofo), é claro que desse autor podemos e devemos esperar o melhor.
E o melhor, acredito, é o que podemos colher deste belíssimo romance- O Solitário da Montanha-( São Paulo, Editora Nova Aldeia,2005), última criação de Vasco dos Santos, um dos maiores e mais eruditos arautos do romance histórico e do mar salgado da escrita na literatura de língua portuguesa.
E o que este maduro romance documenta?Uma história de amor e heroísmo, uma história de movimento e de ação do espírito posicionada contra os contextos arcaicos da imensa violência do mundo. Somente a vida, louvada a partir da solidão dos que amam, faz sentido neste romance de enredo sublime, cuja leitura recomendo com entusiasmo.
Não é feita de matéria bruta a sua tessitura linear, nem de discursos formais enfadonhos é tecido o enredo exemplar desta narrativa. O autor, ao contrário, a escreveu com as tintas da paixão e a ungiu com a aliciante sintaxe da solidão e do desejo, fiel ao seu ideário de esteta e à sua vocação de escritor de estatura maior.
Restaria uma palavra a dizer sobre o enredo deste grande romance e desta grande sinfonia estilística, que tanto me tocou a emoção e o engenho, que tanto me curou da intensa agonia de viver e que tanto me curou também com o seu estupendo poder de catarse e efeitos virtuais e sinérgicos que se lêem a partir do seu articulado.
Nem tanto assim, acredito, deveria proceder um prefaciador, pois não me é lícito roubar ao leitor o prazer de aprender com a sedução da leitura. A estética da recepção existe para isso: privilegiar a interlocução, restabelecer os princípios maiores da interação e da alteridade.
Se aqui fosse somar o talento do escritor que arquitetou este livro com a erudição e o talento que sempre remarcaram a produção do romancista, do ensaísta e do poeta Vasco dos Santos, creio que teria motivos para dizer que estamos diante de um dos nossos maiores literatos.
Lícito não me seria também calar acerca da claridade estética deste texto sobre a sua leveza e concisão de linguagem, sobre a sua disciplina formal e o seu rico e diversificado conteúdo. Fica aqui a recomendação da leitura: imperdível, humana, maneirosa, sutil e desafiadora, sob qualquer ângulo em que o romance e o seu argumento aliciante possam ser examinados, para glória da literatura que hoje se pratica no Brasil.
Fortaleza, 29 de Setembro de 2005
Dimas Macedo


“.....Dumas sentiu aumentar a ansiedade e não despregou mais os olhos do alto dos penedos-juntos onde a águia se alcandorava. Parecia sisuda, de tão solene, calcando a bandeira branca com as unhas, alongando a cabeça altaneira espaço além, com os olhos estáticos, parados, pespegados no infinito. Depois, com o mesmo carinho com que estendera a felpa branca sobre a rocha gigante, a recolheu e acondicionou segura nas garras aduncas de suas patas. Num último olhar sobranceiro sobre o cume da montanha, ergueu a cabeça alongando o pescoço esbelto, bateu as asas num primeiro movimento de iniciação do vôo imponente e lançou-se ao espaço na viagem do retorno anunciado. Fê-lo com a graciosidade e magnitude costumeiras. O pano branco espadanava-se em acenos que Dumas interpretava com gesto de convite apontando-lhe o caminho dos céus, o rumo da Eternidade. Essa era a rota do seu destino. A estrada mais curta na configuração do sonho e do anseio, da utopia acalentada, da certeza absoluta a alimentar-lhe a alma em tantos arroubos de êxtases sublimados. O sublime e o belo, o esplendor da verdade, estão ali ante os seus lhos fechados na introspecção do milagre e do mistério. No rastro tracejado no céu pelos contornos da bandeira branca descobre o rumo do infinito. Permanece de pé no enlevo propiciado pelo vôo sublime da águia cortando o espaço como flecha incandescente. Irá acompanhá-la passo a passo até onde a sua mente alcança. Perderá a visão mas não a perspectiva e menos o rumo. Irá segui-la até ao infinito. É lá que mora o seu desejo. Fechou os olhos na oração inebriante a inundar-lhe a alma. Já não vê a águia e o pano branco da misteriosa bandeira desapareceu e não drapeja mais à frente dos seus olhos cansados. Envolveu-se no mistério do infinito e o seu corpo definha à luz dos olhos da alma que os do corpo não irradiam mais luz. Enxerga somente o sonho de eterno visionário que o arrancou do mundo, o separou dos homens, no caminho da nova dimensão procurada incessantemente onde o amor seja registro da paz infinda. Um grito que foi anseio da procura repercutiu do alto da montanha e cindiu os céus com o seu brado: “ Deus, ó Deus, ó Deus!” Ninguém o escutou. Ninguém.O eco era pesado como chumbo mas a sua alma tinha a leveza da bandeira branca que a águia do mistério e do sonho carregou para o infinito. Na esperança do brado angustiante e clemente, só Deus aparece.
O solitário da montanha, finalmente, tranqüilizou-se e adormeceu aos pés do Omnipotente.”


domingo, 11 de novembro de 2007

PORQUE CHORAM OS BIGUÁS- UM GRITO ECOLÓGICO

Porque Choram os Biguás
Um grito ecológico

“...No meio de tanta dor, o Biguá conformou-se e rendeu-se à evidência da tragédia – o filho jazia morto a seu lado...E deu de chorar à sua maneira – a que os humanos não decifraram ainda. Mas, o Biguá chorava”

“Milhares de pessoas olhavam para a baía, para as águas da baía que são as águas do mar que formam o mar da baía e ninguém suspeitava nada do que estava acontecendo nas águas deste mar da baía ou na baía das águas deste mar.
Milhares de turistas continuavam deslumbrando-se com as belezas das águas do mar da baía e permaneciam de olhos abertos tentando guardar as imagens belas destas belas águas da bela baía do mar.
Milhares de banhistas usufruíam das delícias das águas do mar da baía, mergulhando, nadando.......
Milhares de outros freqüentadores passeavam por sobre a maciez das areias brancas da praia imensa ou nelas se deitavam ou nelas se enterravam ou nelas brincavam ou nelas se amavam – o que era freqüente- e, ali, se quedavam ao acalanto das ondas remansosas do mar da baia, da baía do mar, sacolejando os corpos enrolados nas areias soltas e evolando as almas na espuma branca a beijar-lhes os pés, a coçar-lhes a planta dos pés, a acariciar-lhes a pele bronzeada pelos afagos do sol escaldante dos trópicos do mar-oceano e eles devolviam tudo às águas azuis do mar da baia engolindo os beijos e os derriços e os amores e os enleios e os prantos e as dores e os milhões de anseios com que enleavam os corpos nas ânsias incontidas que lhes adornavam as almas invisíveis nos sonhos do encanto e da ilusão sofrida.
Somados todos estes milhares de seres existentes à frente das águas azuis deste mar da baía, da baía deste mar, é fácil pressupor-se que se trata de milhões de humanos continuando a passar olhando e a passar desfrutando da beleza das águas do mar da baia deslumbrante.
E, ali, até quanto se possa avaliar, todos os olhares destes milhares e milhões de humanos perderam-se no horizonte.......ninguém enxergava nada e cada um acreditava só no que via, que era o nada que se podia ver além disto – o enxergado e o visto que ninguém via.
E foi por causa desta limitação visual dos humanos que a imensa fauna que nas águas da baía mora e passeia, nela nasce e vive e morre e se alimenta ou sobrevive nos manguezais circunvizinhos e limítrofes, se resolveu a unir esforços, na solidariedade que lhes é imanente, enfrentando a sobrevivência.
Dado o alarme do vazamento do óleo da imensa refinaria, pelos peixes que viram primeiro e pelo Biguá, logo em seguida, a fauna se pôs em polvorosa.”

“O Biguá tomou o comando da parte que lhe dizia respeito e conclamou todos os demais componentes da fauna da baia e cercanias a somar esforços na luta que se afigurava descomunal entre a vida e a morte.”
“Como os humanos, também eles eram milhares, somavam milhões e equilibravam o tão propalado ecossistema, sem eles impossível de ser mantido”.
“ A tragédia é que os humanos sabiam desta sua imprescindível contribuição ao equilíbrio ecológico mas pareciam ou fingiam ignorar esta afronta suicida.”
“Um ar de pânico deu de carregar o ambiente e o que se pôde ver foi uma correria aflita e desengonçada e sem rumo da infinidade de caranguejos e similares, desarvorados e aflitos, procurando cada qual a sua toca e seu esconderijo, nela se protegendo, na esperança ilusória de, assim e desta maneira, escapar do desastre fatal”.
“Dava, até, para rir, no cúmulo e no patético da cena, vendo a aflição dos atônitos artrópodes.Atropelavam-se, engalfinhavam-se em brigas grotescas e de desespero e, na porta de muitas tocas, o tumulto deixava à mostra, patas e membranas e demais pedaços dos seus corpos, estraçalhados uns, outros mutilados de todos os modos e maneiras, todos, igualmente, patenteando a fúria da luta pela sobrevivência, travada de forma tão singular e violenta, no areal onde sempre conviveram pacificamente, mexendo-se, ainda, pulando em acrobacias que o último sopro de vida acalentava nos momentos que antecediam a morte, aos pulos e aos saltos que eram protestos inócuos de angústia e desespero, num bailado estranho, ao ritmo do estrebuchar da agonia, formando um espólio dantesco no rescaldo da pugna caricata aos nossos olhos mas triste pelo seu significado, marcando a ansiedade em conseguir segurança num abrigo deficiente. No fundo, era patético”.
“Mal sabiam eles que de lá sairiam, os que pudessem, a toque de caixa, se tal conhecessem, mas com a boca e os pulmões atochados do veneno mortal da hecatombe do petróleo para morrer na praia – escárnio da linguagem retratando o desespero e a morte”.
“Este trágico suicídio coletivo mancharia o homem como mancharia as águas do mar da baía....”

“....Vida de pescador é assim mesmo.O pescador é homem do mar, nele mora e habita.É do mar que vive. De lá retira o seu sustento.À terra só desce nas horas da precisão. Vai pra descarregar o peixe.Vai pra consertar o barco. Vai pra remendar a rede. Vai pra abastecer o barco. Vai pra retornar ao mar de barco. Vai pra carregar os suprimentos com que se alimenta no retorno ao mar. Vai pra voltar de barco mar adentro, oceano além, até encontrar peixe, até que houver e que Deus dê. O pescador é um homem do mar”.
Felipe disse isto tudo em voz alta para si mesmo – talvez quisesse dizer tudo isto para os peixes o ouvirem. Mas, os peixes estavam todos mortos e não ouvem nada ainda que se trate da voz de pescadores vivos”.
“Felipe talvez quisesse dizer tudo isto para as gaivotas buliçosas e atrevidas cortejando o percurso do barco até à praia ou ao cais do destino, vigiando a rede carregada do cheirum dos peixes, o barco adernando cheio de peixes, engrossando este cortejo embandeirado de fartura e glória, onde o pescador e os peixes são personagens primeiros desta procissão farta de alimentos e de aves marinhas.....”
“Felipe talvez quisesse dizer tudo isto a Iemanjá – rainha do mar de todas as baias do mar. Mas, Iemanjá, envergonhada, permaneceu nos fundos do mar,recusando-se a olhar de perto o assassinato inglório dos moradores do seu reino e súbditos do seu império”.
“Felipe, talvez quisesse dizer tudo isto para Deus dos Céus e para os anjos e os santos e os arcanjos e os querubins e os serafins e as potestades incontáveis que semeiam o cosmos misterioso e infinito...”
“Felipe, talvez, quisesse dizer tudo isto só para a sua alma ......também não pactuava com esta destruição em massa e recolheu-se ao mais profundo do seu âmago chorando m silêncio”.
“Felipe talvez quisesse dizer tudo isto e nem ao certo soubesse para quem teria de dizer isto tudo que ele dizia sem ouvir resposta de qualquer espécie”.
“O pescador Felipe passara todos aqueles dias abrindo covas extensas para enterrar os peixes e os caranguejos e os Biguás mortos.”
“Cansado, sentara-se à sombra do manguezal.Acabara de cobrir a última cova aberta onde enterrara uma infinidade de criaturas mortas.........o caranguejo parou de se mexer e, num esforço doloroso, virou-se de costas...mexeu lentamente os tocos locomotores que lhe restavam apensos ao corpo, quedando-se em definitivo na inanição crepuscular da vida. Estava morto. Felipe deu-se conta.....Pegou-o nas mãos e ficou a olhar-lhe o corpo mutilado e enegrecido pelo óleo escuro durante algum tempo. Visão macabra”.

“............Com as mãos, o pescador alisava o monte de areia encimando a cova rasa onde jogara o caranguejo mutilado..... recolheu-se dentro de si e deu de falar com a alma, como se rezasse a oração que agradaria aos céus. E assim formulou a prece:
“ Senhor, vós que criastes o homem à vossa imagem e semelhança e o fizestes rei da criação e lhe destes os animais e as aves e os peixes e os crustáceos, os frutos da terra e do mar, para que deles se alimentasse e subsistisse, o fizestes com a dignidade devida a todo o ser criado, tende piedade do homem que criastes e a quem recomendastes a preservação da natureza.Compadecei-vos, Senhor, da humanidade que na ambição e na ganância desmedida deposita a alma e escraviza o corpo. Tende piedade e misericórdia da criatura humana, fruto do pecado do egoísmo. Não permitas mais, Senhor, que a natureza seja agredida e que a vida dos mares e dos rios, dos vales e das montanhas permaneça para sempre a salvo, usufruindo do encanto e da beleza que lhes destes no ato sublime da criação do mundo. E, por fim, perdoai-nos, Senhor, os crimes perpetrados pelo homem contra a natureza e afastai esse pecado da humanidade para sempre, amen”.......

“O pescador pegou o Biguá exangue, agonizando, aconchegou-o ao peito e, antes de o socorrer, jogou uma pedrada atingindo em cheio o urubu a fita-lo com aqueles olhos de arrogância insolente e provocadora.”............................
“Fazia tempo que o Biguá rodeava o filhote........Chegou até ali mas caiu de morte na areia da praia, debatendo-se no estertor da morte.....Já o arrastara o quanto pudera.Puxara-o pelas asas, empurrara-o pelo bico, pelas patas, a todo o corpo ajuntara forças tentando liberta-lo”.
“....No meio de tanta dor, o Biguá conformou-se e rendeu-se à evidência da tragédia – o filhote jazia morto a seu lado..... Tinha a certeza de que estava morto. E deu de chorar à sua maneira – a que os humanos não decifraram ainda. Mas, o Biguá chorava...........................”
“Quando, pela madrugada, Felipe, o pescador amigo dos peixes e dos Biguás, se encaminhava com o seu barco na tentativa de pescar alguma coisa, deu-se conta do que se passara, ali, durante a noite.
“ Aproximou-se. O Biguá- vivo agonizava de bruços sobre o filhote morto. Ao redor, nas areias revolvidas, os indícios de briga violenta. A um canto mais adiante, o Urubu, com um olho vazado e caído da órbita, sangue escorrendo pela cabeça, rodopiava sem cessar em volta de si mesmo, num rodar de angústia e dor que o entontecia – mariposa enlouquecida e tonta no bailado sem retorno em volta da luz da lamparina.
“Felipe pegou os Biguás mortos e foi enterrá-los numa cova que abrira a dois passos.O Urubu, num supremo acúmulo de forças, alçou vôo rumoroso mas desnorteado e sem rumo até engasgalhar-se no cume da ramagem do arvoredo do manguezal onde se enfronhou com o ruído da agonia e ânsia da morte”.

“ Os Biguás vinham em revoada.Era um retorno festeiro.....Nem Felipe esperava que eles aparecessem tão já, como todos os outros pescadores, embora o ansiasse.....
“O certo é que os Biguás estavam ali e com eles a vida voltou a pulular nas areias e nas árvores do manguezal....
“A um canto, Felipe, de pé, solitário, compartilhava, à distância, da alegria e do sorriso destas criaturas tão expansivas com o regresso ao seu ninho e não se cansa de olhar aquilo.”
“Era um milagre, dizia”.
“Contagiado pelo extravasar tão alegre da chegada destes seus irmãos de raça, o seu Biguá readquiriu todas as forças perdidas. Revigorou-se, bateu as asas, ergueu-se, deu dois, três, perdeu a conta dos passos e, num vôo confiante, emparelhou com outros Biguás, esvoaçou por sobre as águas serenas da baía, viu, outra vez, do alto, as terras do seu reino, as águas das suas terras, o espaço dos seus domínios e, de regresso, num vôo rasante, raspou pela cabeça do seu protetor amigo e pousou no mais alto das árvores do manguezal.Equilibrou-se e olhou firme para o velho pescador, numa homenagem de gratidão. Cruzaram-se os olhares – Biguá e pescador, homem e animal, a natureza ali representada pelos dois seres que, igualmente, fazem parte do mesmo universo. Felipe firmou seus olhos marejados de lágrimas de sabor eterno, repassadas de amor à natureza que o envolvia, nos olhos de gratidão inexplicável do Biguá agradecido. Não sabe como mas, ambos choravam.”


terça-feira, 6 de novembro de 2007

CARMEN 47 SONETOS+UM



"A morte carrega a solenidade do mistério e o questionamento do absurdo. É a sensação que subsiste ao contato direto com ela... A solenidade da poesia, que se atribui ao soneto , foi, de fato, proposital, com o intuito de, solenizando a morte, perenizar a vida."- O Autor
Carmen 47 sonetos + um

“A morte carrega a solenidade do mistério e o questionamento do absurdo”- Vasco dos Santos

Soneto I

Se, dormes, mesmo assim, o sono lento,
Igual a existência te consente,
A vida não se acaba de repente
Em ânsia de viver final momento.

Se indagas, em murmúrios, tal lamento
Que a razão desconhece por ausente,
Algo que não se enxerga está presente
Nos teus suspiros leves como o vento.

Deixa que se esparrame no teu leito,
Onde a luta final se desenlaça,
A translúcida luz pela vidraça

E continuarás viva doutro jeito
Porque a vida se vive quando passa
E a morte amiga vem e nos abraça.

S.Paulo,21 de agosto,2006-domingo-3,40 da madrugada, quarto de nº 911 do hospital alemão.
Soneto VI



Os versos que faço burilei
Dentro do coração, como lembrança
De um amor carregado de esperança,
Em dias, tantos são que nem mais sei.

Pensei-os um a um e os alberguei
Bem dentro d´alma – brisa suave e mansa
Dum sonho de sorrisos de criança-
E, dentro de mim mesmo, lá, guardei.


Depois, é sempre igual o doce encanto
Das almas que o mistério mais sublime,
Transparente à verdade que redime,

Apaga a dor intensa do seu pranto,
E o caráter divino à alma imprime
E no sorriso eterno se reanime.



São Paulo,30 de Agosto 2005